quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

O caso Humberto de Campos: alegações, confusões e emoções

ANTÔNIO WANTUIL DE FREITAS E FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER.

Uma das mais habilidosas fraudes feitas em nome do "espiritismo" brasileiro pode ser observada na mensagem atribuída a Humberto de Campos publicada no livro A Psicografia Ante os Tribunais, de Miguel Timponi (FEB), lançado em 1944 como um relatório, sob o ponto de vista da Federação "Espírita" Brasileira, do processo movido pelos herdeiros de Humberto de Campos.

O processo, que teve como réus a FEB - sobretudo na pessoa de seu então presidente, Antônio Wantuil de Freitas - e Francisco Cândido Xavier, anti-médium mineiro que usou o nome de Humberto de Campos para lhe atribuir autoria espiritual de suas obras (sobretudo o ufanista Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho), havia terminado em empate.

O empate favoreceu Chico Xavier, como naquele "0 X 0" que rende pontos a um time em vantagem. Primeiro, porque os padrões jurídicos da época não apreciavam questões envolvendo obras aparentemente produzidas por pessoas já mortas.

Segundo, porque os familiares deram um enunciado neutro à causa, pedindo para se verificar se a autoria atribuída era autêntica ou não, em vez de investir no propósito direto de processar a FEB e Chico Xavier pela apropriação indébita do nome de Humberto de Campos.

REAÇÕES DOS DOIS LADOS

Astuciosos, Chico e Wantuil acusaram os herdeiros de Humberto - D. Catarina e dois de seus filhos, Humberto Filho e Henrique (a irmã dos dois, Lourdes, apenas participou como solidária ao processo dos familiares) - , de quererem faturar com as obras "espirituais" de Humberto de Campos através da reivindicação de direitos autorais.

Por outro lado, Chico Xavier alegava "sentir-se triste" com o processo e com a repercussão negativa de sua "psicografia": "Será que esses livros, por mim psicografados, são vendidos aos milhares e a ponto de causar tanta celeuma? Meu Deus, tudo que eu faça é a chamado dos espíritos e por profunda caridade!"

Críticos de Chico Xavier contestam essa declaração. Um comentário de Humberto de Campos Filho, um dos que moveram o processo contra o anti-médium, no seu livro Irmão X, Meu Pai, é ilustrativo da indagação que se fazia a respeito das supostas obras espirituais:

"Se essa Federação estampasse, como autor, o nome de João da Silva, os venderia com a mesma facilidade? Por acaso os laços que sempre prenderam, em vida, o escritor aos seus herdeiros desapareciam com a sua morte? Pela simples razão de não fazer mais parte do rol dos vivos, o seu nome caía no domínio público?"

Mas a FEB tentava defender a sua apropriação. O advogado da federação, Miguel Timponi, autor do referido livro sobre o processo, dentro da retórica habilidosa que advogados costumam ter para promover a persuasão ao juri e criar uma sentença favorável ao seu cliente, veio com a seguinte argumentação em defesa da "psicografia":

"Há injúria ao nome venerado de Humberto de Campos? Há, porventura, desrespeito à sua memória? Há qualquer referência desprimorosa ao seu caráter? Há qualquer insinuação maldosa, reticente, equívoca, à sua personalidade? Há qualquer aleivosia ou depreciação à sua conduta como cidadão ou como escritor?

— Não. — São livros de robusta e austera moral e que têm merecido as melhores apreciações. São ditados de grande saber e de profundas cogitações filosóficas. São obras que convidam ao estudo, à meditação, e que não comprometem os princípios da nossa organização política, porque não atentam contra a segurança pública e os bons costumes".

Isso não indica, necessariamente, que a veracidade autoral ocorra em função de "lições morais" ou que aparentemente respeite a reputação da pessoa a que se atribui a autoria, Essa argumentação nada diz sobre a veracidade da autoria de Humberto de Campos, por mais que sejam difundidos "ditados de grande saber e de profundas cogitações filosóficas".

Outro aspecto a ressaltar é a exploração do sentimentalismo à mãe do escritor, Ana de Campos Veras, que, lendo Crônicas de Além-Túmulo, de 1937, primeiro livro de Chico Xavier feito sob a "grife Humberto de Campos", acreditou identificar nele o estilo de escrita do falecido filho.

UM CASO MAIS ATUAL, A TÍTULO DE COMPARAÇÃO

No entanto, familiares, com toda a intimidade que possuíram e a permanente afeição aos entes que já faleceram, não são necessariamente especialistas ou cúmplices de seus trabalhos. Vide, por exemplo, o caso recente de Giuliano Manfredini, filho de Renato Russo, que não possui a compreensão vivencial da trajetória da Legião Urbana.

Giuliano trava uma disputa judicial com dois músicos da antiga banda, o guitarrista Dado Villa-Lobos e o baterista Marcelo Bonfá, que de fato conviveram com Renato e compartilharam com ele toda a experiência profissional, artística e social do famoso grupo de Rock Brasil.

Já o filho de Renato, Giuliano, que reclama ser o herdeiro do espólio do pai, era criança quando a Legião Urbana acabou devido à morte do vocalista. Giuliano não acompanhou as referências culturais do pai, estando mais próximo de referências como Charlie Brown Jr. (grupo cujos fãs chegaram a ser hostis com Renato e a Legião Urbana, mas depois embarcaram no saudosismo do grupo, após a banda dos falecidos Chorão e Champignon ter gravado "Baader-Meinhof Blues").

Familiares conviveram com seus entes em situações que não envolvem produção artística ou cotidiano profissional. Podem até se sentir solidários a tais atividades, mas não necessariamente exercem acompanhamento intenso a ponto de se especializarem nesses trabalhos.

Pelo contrário, é nessas situações que se encontra o distanciamento familiar, por mais que a afeição seja intensa, permanente e inabalável. E é aí que a individualidade de alguém se torna complexa para que seus familiares, mesmo os que o acompanharam desde o berço e entendem seus aspectos mais íntimos, compreenderem de fato.

Ana de Campos Veras, viúva do comerciante Joaquim Gomes de Farias Veras, não era uma estudiosa em literatura, do nível que seu filho Humberto foi. Por isso ela, tomada pela emoção, viu algumas semelhanças entre o livro do suposto espírito de seu filho e atribuiu veracidade, tão comovida com o rumor da atividade espiritual de Humberto e traída pelos arroubos de saudade intensa.

O êxtase da saudade, depois da perda de um ente querido, faz a emoção cegar a razão. Pela ânsia de alguma mensagem nova de um morto, muitos familiares se deixam iludir pelas relativas semelhanças, sem saber que a intenção do pastiche é apresentar uma parte do verdadeiro, as semelhanças parciais não indicam veracidade, embora tenham a pretensão de representá-la.

As semelhanças vagas e superficiais, porque genéricas, banais, manjadas e conhecidas por um amplo público, não sugerem necessariamente que tal pastiche é verdadeiro, por mais que ele acumule semelhanças ao original, tais como um boneco de cera que simboliza virtualmente um indivíduo.

Por isso, a emoção acaba cegando, e nesse turbilhão de confusões, contradições e emoções, a veracidade não pode ser vista como um indivíduo que entra pela porta dos fundos e domina o ambiente. A veracidade é subordinada a rigoroso exame, que relativizações, argumentações contraditórias e arroubos de emotividade saudosa não conseguem justificar com isenção.

Ainda mais quando se observa contradições de estilo entre uma mensagem tida como "espiritual" e o estilo original do autor a que tal mensagem é atribuída. Quando aparecem as contradições, a presunção de veracidade torna-se uma ideia discutível e de crédito bastante duvidoso.

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