sábado, 28 de março de 2015

A historiografia defasada de Chico Xavier


Embora Francisco Cândido Xavier seja ele mesmo um mestiço, com misto de índio e negro, seus livros descrevem os povos negros e indígenas como "selvagens", como "desgraçados que merecem a misericórdia divina", espécie de eufemismo dócil para sua inferiorização social.

O anti-médium mineiro baseava sua visão nos livros de História que aprendeu na infância e na orientação jesuíta do espírito do padre Manuel da Nóbrega, que, evocado por Xavier, passou a assumir a alcunha de Emmanuel, com base na simplificação do antigo título "Ermano Manuel".

Com base na abordagem historiográfica do Brasil na época, com uma abordagem fantasiosa, mitificadora e socialmente preconceituosa, os índios eram vistos como uma espécie de "malandros" e os negros eram tratados como se fossem animais selvagens, "rebeldes" que precisavam ser "domados".

A visão jesuítica, então, além de corroborar essa triste imagem atribuída a índios e negros, uma clara demonstração de racismo que, hoje, sujeitaria alguém à prisão em regime fechado e sem fiança, tinha também a "solução" do proselitismo religioso da catequese, transformando os "selvagens" em "cristãos".

Chico Xavier apoiava a visão jesuíta e a adaptava à sua interpretação catolicizada da Doutrina Espírita e seu poder supostamente acolhedor das diversas estratificações sociais pelo "Espiritismo Cristão" que estava construindo a "Pátria do Evangelho" do Brasil tido como o "Coração do Mundo".

Como "dono dos mortos", Chico inseriu seu preconceito de que índios e negros eram "selvagens" em obras atribuindo a outros autores, como Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, creditado a Humberto de Campos, e o poema Marchemos!, do livro Parnaso de Além-Túmulo, creditado ao poeta Castro Alves. Os dois não pareciam ter tido essa visão racista em vida.

MAIS UMA VEZ CHICO XAVIER ESTAVA ANTIQUADO

Um Chico Xavier atrasado não poderia colocar um personagem fictício, André Luiz, para "antecipar" em seis décadas dados científicos que um grupo de acadêmicos "espíritas" não percebeu que eram fartamente debatidos na época do livro Missionários da Luz, de 1945. É até possível que o suposto espírito estivesse atrasado em dois anos ou mesmo em quinze, se os acadêmicos tivessem pesquisado rigorosamente as próprias fontes dos anos 1940 sobre a glândula pineal.

Pois o atraso de Chico Xavier, que estava indiferente à urgência de repensar a sociedade e escreveu Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho (provavelmente em parceria com Wantuil de Freitas, editores da FEB e consultores literários) baseado em abordagens históricas constrangedoras de tão retrógradas, se confirma diante da situação que descreveremos.

Pois o livro atribuído a Humberto de Campos (que, no entanto, nunca teria escrito tamanha aberração literária), que já descreve o desejo de Chico Xavier de ver o país sendo "o mais poderoso do mundo", reforçado depois pelo sonho "profético" da "Data-Limite", foi lançado em 1938, mas bem antes um grupo de historiadores já se empenhava em trazer uma abordagem historiográfica diferente.

Em 1929, os historiadores franceses Marc Bloch - curiosamente conterrâneo de Allan Kardec, já que nasceu em Lyon - e Lucien Febvre, professores da Universidade de Strasbourg, também na França, analisaram a situação histórica do mundo mediante a crise causada pelo colapso na Bolsa de Valores de Nova York, que causou efeitos devastadores na sociedade mundial, incluindo o Brasil.

Eles questionavam a validade da abordagem histórica conhecida como "história dos acontecimentos", em que os personagens mais destacados eram militares, políticos e artistas, e não raro sugeriram narrativas fantasiosas, bajulatórias e mitificadoras. Era a história dos "vencedores", que não obstante deixava de ser fiel à realidade e a veracidade dos fatos.

Bloch e Febvre criaram então a Escola dos Annales, para desenvolver uma abordagem histórica que levasse em conta diversos aspectos, como o social, econômico e cultural, além de estabelecer um diálogo com a Antropologia, a Sociologia e a Geografia Humana, entre outras áreas.

Outra medida da Escola dos Annales é também retratar a história das sociedades através dos personagens anônimos, sobretudo de um "estado de espírito" coletivo, que Bloch e Febvre definiam como "mentalidades", definidas pelo tempo e espaço. Daí o nome História das Mentalidades.

A História das Mentalidades ampliou o leque da abordagem histórica de tal forma que criou uma metodologia interdisciplinar capaz de abordar desde a trajetória de um grupo de operários ou lavadeiras até mesmo estudar o histórico das brincadeiras infantis, aprofundando e diversificando os estudos sobre as atividades humanas e o seu comportamento.

Portanto, nove anos antes do "revelador" Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, três anos antes de Parnaso de Além-Túmulo e quinze anos antes da consagração do "moderno mito" de Chico Xavier (no mesmo 1944 em que Marc Bloch foi assassinado por tropas nazistas que dominaram a França), pensava-se numa reformulação da História que o "avançado" Chico não percebeu.

Um dos maiores beneficiários da História das Mentalidades no Brasil foi, curiosamente, um geógrafo, o baiano Milton Santos, que se serviu da metodologia interdisciplinar lançada pela História das Mentalidades. Sua Geografia Humana dialogava permanentemente com a Sociologia e a Antropologia, áreas das quais o geógrafo baiano "tomava emprestado" para explicar as relações entre o homem e o espaço, trazendo também brilhantes empréstimos da abordagem histórica.

São abordagens amplas, diversificadas e questionadoras, que abriram um "mundo" de possibilidades para o estudo histórico, e que o "revelador" livro de Chico Xavier atribuído a Humberto de Campos (o que incomodou, com razão, os herdeiros do escritor maranhense) simplesmente ignorou, e, como se isso não bastasse, soa bastante defasado.

No caso dos índios e negros, as novas abordagens históricas reconheceram que os dois tipos étnicos, além de expressarem uma diversidade de povos, com várias tribos indígenas e africanas, dotadas de organização social, valores culturais e estruturas sociológicas comprovadas pelos estudos científicos modernos.

Relatos de tribos indígenas e africanas que priorizam a educação de suas crianças, que possuem estrutura social organizada, que desenvolvem habilidades técnicas e possuem um senso de logística no aproveitamento racional dos recursos naturais são hoje conhecidos através das modernas abordagens da História da Humanidade.

Portanto, a abordagem histórica de Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, é ultrapassada e falha em muitos aspectos. A obra se inspira em livros didáticos da época e ainda aponta plágios de diversos livros, inclusive os que Humberto escreveu em vida. Até mesmo uma passagem cômica de O Brasil Anedótico é reproduzida (por plágio) como se fosse um relato "sério".

Portanto, esse livro, na verdade um "documento" que expressa a torcida de Chico Xavier por um Brasil "mandando no mundo" só serve para antecipar as fantasias que hoje são conhecidas pelo sonho da "Data-Limite".

Mas a abordagem histórica do "Coração do Mundo" soa antiquada e cheia de falhas para que a ciência pudesse dar ouvidos a qualquer "previsão" de Chico Xavier, que levou um baita "zero" em História.

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