quarta-feira, 13 de maio de 2015

"Espiritismo" e a supervalorização da Lei Áurea

A PRINCESA ISABEL E SEU PAI, O IMPERADOR DOM PEDRO II.

Há muito tempo os brasileiros não celebram mais com entusiasmo a Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel Cristina de Bragança e Bourbon, filha do imperador Dom Pedro II, o monarca do Segundo Império e o primeiro e único nascido no Brasil.

A Lei Áurea foi assinada em 13 de maio de 1888, e oficialmente foi considerada pelos historiadores como o ponto máximo da luta contra a escravidão, Prevalecia a abordagem da "História dos Acontecimentos", que supervalorizava os feitos de pessoas detentoras de poder e fama.

Tempos depois, quando Marc Bloch desenvolveu a História das Mentalidades, que ampliava o leque da abordagem histórica para personagens anônimos ou para uma ampla diversidade de atividades sociais - até mesmo brincadeiras infantis e um simples trabalho de costureiras também tinham sua História - , a expectativa mudou completamente, juntamente com as circunstâncias.

Isso porque se viu depois que a Lei Áurea se mostrou ineficaz. Ela deixou o povo negro à própria sorte. Se a assinatura da Abolição não indenizou os senhores de engenho, que, irritados, aderiram à causa republicana só para derrubar o Segundo Império e se tornaram artífices da hoje conhecida República Velha, também não deu um projeto de ressocialização dos ex-escravos.

Apenas uma parte dos escravos libertos conseguiu subsídios para alguma prosperidade social. Mas eles eram favorecidos pelas condições em que o esforço individual dessa parcela do povo negro permitiu, porque eles não eram assistidos pelo Governo, antes tivessem sorte, talento e contatos para poderem se tornar economicamente prósperos.

Uma grande maioria, porém, continuou pobre e foi viver no emprego informal, isso quando podia. Muitos negros se tornaram "vagabundos" por verem tantas limitações para o mercado de trabalho que deram origem até aos "malandros" que habitam o imaginário popular. O mercado de trabalho não dava a devida atenção a esses jovens, que sobreviviam às custas de parentes e amigos.

Há também aqueles que se tornaram criminosos, diante da revolta que tiveram contra os senhores de engenho e contra o sistema opressivo em que viveram sob os diversos aspectos. Passaram a se tornar assaltantes e a comandar quadrilhas, dando origem a um histórico criminoso que hoje culmina com o narcotráfico aliado ao comércio internacional de armas e a criminalidade organizada.

A Abolição acabou dando origem às favelas, porque a urbanização excludente indenizava mal as populações desalojadas e a especulação imobiliária já nascente queria instalar estabelecimentos comerciais. Também não havia uma política habitacional para os ex-escravos e isso os prejudicou, forçando-os a improvisar casas rudimentares para terem algum abrigo permanente.

A situação do povo negro demorou para ter melhorias significativas. Se, em pleno 2015, um grupo de alunos é capaz de ficar impune ao humilhar violentamente uma aluna, a jovem Lorena dos Santos Almeida, de uma escola em São Bernardo do Campo, do ABC paulista, então todo o trabalho de emancipação dos negros tornou-se uma tarefa trabalhosa e cruel.

Há casos de racismo e de trabalho escravo no Brasil, coisas que acontecem de maneira clandestina ou enrustida. Nada é claramente assumido, mas as humilhações feitas contra o povo negro e os trabalhos precários empregando negros, índios e outros mestiços, com baixíssimos salários e sem qualquer encargo ou proteção. E já são 127 anos após a "maravilhosa" assinatura da Lei Áurea.

Pior é que esse regime precário não se dá somente a usinas e engenhos localizados em fazendas no interior distante. Até mesmo numa empresa multinacional, como a rede de lanchonetes (que se autodefine como "restaurante") McDonald's, há denúncias de trabalho precário e humilhações sofridas pelos empregados, não bastassem os salários humilhantes.

E temos até mesmo a precarização cultural do "funk", exaltada por uma campanha cheia de coitadismo movida por uma elite de intelectuais paternalistas, acontece, camuflada por uma retórica que, de maneira a mais hipócrita possível, evoca a "alta qualidade" e o "intenso ativismo" do famoso ritmo dançante carioca.

Isso porque, por trás das "maravilhosas" alegações em favor do "funk", há todo um sistema de valores conservador por trás, incluindo exploração machista da imagem da mulher (mascarada pela desculpa de "novo feminismo") e pela estereotipação da imagem do povo negro por um ritmo marcado pela tirania dos empresários-DJs e pela subordinação e subjugação artística dos jovens negros.

Como se vê, 127 anos de Lei Áurea não conseguiram promover a emancipação dos brasileiros negros. Se eles obtiveram conquistas, foi por conta de outras pressões, outros movimentos, não tão diferentes quanto as pressões e movimentos que ocorreram antes da assinatura do documento pela filha de Dom Pedro II.

LEI ÁUREA FOI O EFEITO MENOR DE UMA GRANDE PRESSÃO

A escravidão já era considerada decadente no mundo desenvolvido das primeiras décadas do século XIX. Mas no Brasil era considerada a atividade-motor da economia nacional, tanto que houve uma brutal resistência para sua extinção. Nem mesmo a adesão do estadista José Bonifácio de Andrada e Silva à causa abolicionista, manifesta já em 1823, convenceu as elites brasileiras.

O capitalismo nascente em países como França e Grã-Bretanha fazia com que especialistas, entre estudiosos da Economia e da Política, da Filosofia e do Direito, definissem o caráter de novas relações de trabalho, embora nessa época as indústrias não tivessem um padrão de relações de trabalho menos injusto que a escravidão.

Afinal, crianças e mulheres eram jogadas no mercado de trabalho mediante uma rotina opressiva, com baixa remuneração e sem qualquer proteção ou encargo. Sofreu acidente, fica por isso mesmo. Se a operária engravidava, era posta no olho da rua.

Mesmo assim, a Revolução Industrial pressionava para que países como o Brasil rompessem com o sistema escravista, considerado antiquado. Navios britânicos eram autorizados a bombardear navios negreiros que estavam a caminho do litoral brasileiro.

Até mesmo as elites intelectuais brasileiras expressavam resistência à causa abolicionista. Vários deles, mesmo na Conjuração Mineira (movimento do qual se destacou Tiradentes), mantinham escravos em suas fazendas.

Muita mobilização se fez e destacavam-se três negros emancipados, os jornalistas José do Patrocínio e os irmãos André e Antônio Rebouças, todos se empenhando em produzir textos que argumentassem sobre a necessidade de abolir o trabalho escravo. Muitos debates aconteciam no Parlamento brasileiro, na antiga capital do Império, a cidade do Rio de Janeiro.

A escravidão só pôde ser rompida aos poucos. Em 1850, em 04 de setembro, a Lei Eusébio de Queiroz determinou a proibição do tráfico de escravos para o Brasil. Em 28 de setembro de 1871, a Lei do Ventre Livre determinou que os filhos de escravos nascidos na referida data eram considerados libertos. Exatos 14 anos depois (28 de setembro de 1885), a Lei do Sexagenário tornava livres os escravos com mais de 60 anos de idade.

Fora os festejos da historiografia oficial, a Lei Áurea foi recebida com apatia pelo povo e pelas elites. Ela foi movida mais pelo grau extremo das pressões de décadas, sobretudo dos interesses econômicos da Inglaterra, e foi apenas um efeito menor de uma grande pressão cujas expectativas foram frustradas pelo inócuo documento assinado pela "funcionária de plantão", a princesa Isabel.

"ESPIRITISMO" AINDA GLORIFICA O "13 DE MAIO"

O papel da Lei Áurea é supervalorizado pelo "espiritismo" brasileiro, que surgiu cortejando o Segundo Império e a Igreja Católica, já que ser "espírita", naquela sociedade atrasada, era quase o mesmo que ser "feiticeiro". Daí vermos que o "movimento espírita" sempre se fundamentou em bases católicas, estruturando seu repertório ideológico que vale até hoje.

A Federação "Espírita" Brasileira surgiu patrocinada por iniciativa do imperador Dom Pedro II junto aos fundadores da instituição. O médico e deputado Adolfo Bezerra de Menezes era um militar a serviço do Império e havia participado dos debates em torno da Abolição, num papel bem-intencionado, mas menos significativo.

Ele chegou a escrever um livro com ideias pertinentes, A Escravidão no Brasil e as Medidas que Convém Tomar para Extingui-la sem Dano para a Nação, lançado em 1869, dentro de um contexto em que o Estado de origem do autor, o Ceará, era um dos que primeiro aboliram a escravidão, num hoje considerado insólito pioneirismo do Nordeste em detrimento do "avançado" Sudeste que custou a abolir o regime escravo.

Mas, pensando bem, esse quadro se assemelha muito ao de hoje, quando o Norte e Nordeste são os primeiros a rejeitar a degradação cultural de tendências "populares" como o "forró eletrônico" e a axé-music, que culturalmente escravizavam os gostos do povo pobre, enquanto o "moderno" Sudeste define como "vanguarda" a terceirização cultural do "funk" ("funk carioca" e "funk ostentação").

A glorificação do "13 de maio" torna-se um dado surreal dos "espíritas", embora compreensível pelo contexto de bajulação que a FEB presta até hoje ao Segundo Império brasileiro. A FEB é conhecida por cortejar o poder, quase sempre buscando agradar o Governo Federal vigente para obter subsídios financeiros, só sendo menos generosos com Juscelino Kubitschek e João Goulart.

Segundo a tese da FEB, o "13 de maio" é uma data triunfante, que expressa o mais alto valor da libertação humana e da construção de um país de solidariedade e fraternidade cristãs. Para a federação, a princesa Isabel e seu pai, Dom Pedro II, eram pessoas da mais alta evolução espiritual e da mais elevada missão humanista de promover uma nação mais justa e próspera.

A euforia que superestima os papéis de Isabel e Pedro - na verdade pessoas medianas de boa índole, simpáticas mas sem qualidades excepcionais - na sociedade brasileira permanecia no livro Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, de 1938, que Chico Xavier e Antônio Wantuil de Freitas escreveram usando o nome de Humberto de Campos.

Até hoje, textos publicados em periódicos "espíritas" exaltam o papel que pai e filha tiveram no Segundo Império, quando sabemos que, no caso da campanha abolicionista, a participação dos dois foi inexpressiva, sendo resultante do maior empenho dos parlamentares que discutiam a questão nas atividades legislativas.

APOSTAS RISÍVEIS (E CONFUSAS) DE REENCARNAÇÃO

Um dado a ser levado em conta são as apostas feitas para supor quem Dom Pedro II foi em uma encarnação anterior distante e quem a princesa Isabel teria sido posteriormente. Nesse hábito surreal e de valor duvidoso de atribuir reencarnações de personalidades revela confusões e atribuições risíveis.

A confusão se dá em conta de quem havia sido Dom Pedro II na Antiguidade. Consta-se que ele teria sido alguém com o nome de Cassius Longinus, mas três hipóteses conflitantes existem sobre que "Longinus" teria sido Dom Pedro II segundo os "espíritas".

A História registra vários indivíduos chamados Cassius Longinus. Três deles se destacam. Um foi o filósofo grego que viveu entre 213 e 273 da nossa era. Outro foi o senador romano, envolvido no assassinato do imperador Júlio César, que viveu entre 85 e 42 antes de Cristo. E o terceiro foi um centurião Longinus conhecido como Cassius, soldado que pregou Jesus na cruz.

Fontes diferentes se referem a qualquer um desses três como suposta antiga encarnação de Dom Pedro II. Todos eles mostram aspectos muito apropriados para os estereótipos explorados pelos ideólogos do "movimento espírita" brasileiro.

A tese do "Longinus filósofo" sugere uma pretensa sabedoria que os "espíritas" evocam de forma tendenciosa da reputação do filósofo. A do "Longinus senador" indica a de um chefe político "arrependido" e depois voltado para o governo "fraternalista". A do "Longinus centurião" indica a de um antigo servo do poder tirânico que depois se voltou para "missões de caridade".

Mas o que chama a atenção é o que os "espíritas" atribuem como reencarnação da princesa Isabel. Há os que acreditam que ela reencarnou como Irmã Dulce, a sóror baiana que desenvolveu um complexo projeto filantrópico que envolve um hospital e até uma fábrica de produção de pães e bolos visando garantir a assistência aos doentes e a garantia de emprego às classes pobres.

O aspecto risível está para outras fontes, que atribuem a reencarnação da princesa Isabel à presidenta Dilma Rousseff. Os anti-petistas ferrenhos iriam cair em gargalhadas histéricas, pelo fato dos oposicionistas, que aliás defenderam o "Fora Dilma" nas passeatas de ruas, não aceitarem qualquer comparação positiva à petista.

Evidentemente que as comparações relacionadas a Dom Pedro II e a princesa Isabel são improcedentes. A de Dom Pedro II é de caráter duvidoso e confuso, se perdendo entre três diferentes indivíduos que em comum têm apenas o mesmo nome.

Já a de sua filha não tem a menor procedência, porque imaginamos que suas caraterísticas pessoais não corresponderiam às que Irmã Dulce teve em sua vida nem às que Dilma Rousseff se manifesta no cotidiano atual.

Como filha de Dom Pedro II, Isabel teria herdado, por razões biológicas, a voz fina do pai, dado que foi colhido pelo historiador Laurentino Gomes a partir de documentos da época. Portanto, ela não teria se tornado depois Irmã Dulce nem Dilma Rousseff, porque nenhuma das duas foi marcada pelo tipo de voz que provavelmente teria tido a princesa.

Imagina-se que o jeito de falar de Isabel teria sido muitíssimo diferente do que registros deixaram de Irmã Dulce, e se pesquisarmos as nuances individuais, veríamos que a comparação nada tem a ver. E, no caso de Dilma, durona e de voz grave, dificilmente se encaixaria no perfil que provavelmente se supõe ter sido Isabel, naqueles tempos em que o fonógrafo era invenção recente e inacessível.

CONCLUSÃO

A Lei Áurea falhou por não estar acompanhada de um projeto educacional e profissional que colocasse os negros libertos da escravidão no acesso à qualidade de vida. Isso deu origem a uma estrutura social das classes pobres, ao lado de índios e outros mestiços, que geram os problemas atualmente conhecidos de ordem social, cultural, econômica e política.

Se ela é exaltada pelo "movimento espírita", é puramente pela origem da FEB, instituição que surgiu sob a guarida do Segundo Império. Daí a propaganda que faz até hoje dos figurões imperiais, que, longe das figuras medianas que foram em vida, são transformados em "heróis da Pátria" dentro de uma mitologia historiográfica há muito superada, mas ainda vigente no "espiritismo" brasileiro.

A propaganda deu origem a todo um ufanismo que se consagrou sobretudo com Francisco Cândido Xavier, que desejava ver o Brasil como "coração do mundo" e "pátria do Evangelho", estabelecendo conexão entre a mitificação do Segundo Império e a "profecia" da "Data-Limite".

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