terça-feira, 28 de julho de 2015

Os kardecianos hesitantes

HÁ QUEM QUEIRA MASCARAR O LIVRO O CONSOLADOR, DE CHICO XAVIER E EMMANUEL, COM A CAPA DE O LIVRO DOS ESPÍRITOS NA TRADUÇÃO DE HERCULANO PIRES.

Existe uma espécie de questionadores dos vícios do "espiritismo" brasileiro que reclamam as bases autênticas de Allan Kardec. Acertam quando reclamam que a doutrina é corrompida por conceitos e práticas que contrariam o que o pedagogo francês havia escrito e ensinado em suas obras.

No entanto, são questionadores que não vão muito além de fazer tais reclamações, e nota-se entre eles a complacência em relação a Francisco Cândido Xavier e, em muitos outros casos, Divaldo Franco, e o pouco ou nenhum questionamento quanto às práticas duvidosas de "mediunidade" feitas no Brasil.

Eles são os "kardecianos hesitantes", que até procuram ler as traduções de José Herculano Pires das obras de Allan Kardec e reclamar da forma como se descrevem, por exemplo, os mundos espirituais, com crianças, bichinhos, campo de golfe, hospitais que parecem grandes centros comerciais, rosas com espinhos, umbrais com pessoas que mais parecem zumbis de filme B.

No entanto, eles se revoltam quando os questionamentos desqualificam Chico Xavier e Divaldo Franco e põem em xeque sua competência mediúnica. Ainda que essa competência se comprove bastante limitada, tantas as denúncias de pastiches e fraudes envolvendo os dois, os kardecianos hesitantes acham isso "um exagero" e tentam defender ambos.

Eles acham que a "mediunidade" dos dois é "altamente confiável", e que ambos podem ser reaproveitados mesmo quando se deixa de lado as abordagens febianas e "trans-febianas", termo relativo aos focos de "espiritismo cristão" observados em dissidentes ou "independentes" como Waldo Vieira, Zíbia Gasparetto, Alamar Régis Carvalho, Robson Pinheiro, Jardel Gonçalves etc.

Chico Xavier é o caso ainda mais frequente, já que existe um apego preocupante dos brasileiros à sua figura, sejam "espíritas cristãos" ligados ou não à FEB, sejam kardecianos hesitantes, sejam pessoas que nem se declaram "espíritas", mas espiritualistas simpatizantes.

Isso porque, no caso dos kardecianos hesitantes, que têm até a intenção de recuperar as bases originais de Kardec, no entanto sentem uma inexplicável complacência com Chico Xavier, talvez com peninha de sua figura estereotipada de caipira frágil dos primórios e do velhinho humilde do restante da vida.

Só que eles não sabem o que fazer com Xavier. Tentam defendê-lo, justificam sua inocência em qualquer polêmica, e, quando não conseguem desmentir suas falhas, se limitam a dizer que "ele errou e precisa ser desculpado por isso". Só não conseguem esclarecer como aproveitar o anti-médium na hipótese de se recuperar, no Brasil, as bases do pensamento de Kardec.

Pelo contrário, eles caem em muitas contradições. Em certos momentos, eles descrevem Chico Xavier como a vítima inconsciente de muitos erros do "movimento espírita". Em outros, o descrevem como um líder não aproveitado da Doutrina Espírita, um poderoso ativista em prol da caridade humana.

Eles não conseguem definir se o anti-médium mineiro era firme ou submisso, achando que sua atividade dita mediúnica era "100% confiável" e que seus inúmeros erros, que os kardecianos hesitantes subestimam, devem ser "desculpados" porque Chico Xavier era uma pessoa ligada à "caridade" e à defesa da "fraternidade".

Dessa maneira, os kardecianos hesitantes não conseguem explicar essas contradições, e com isso também não conseguem estabelecer uma base realmente kardeciana, porque coloca os erros práticos dos "espíritas" debaixo do tapete, achando que os equívocos estão apenas na teoria e em algumas práticas.

Eles não sabem do que aproveitar de Chico Xavier, e, fora descartar os livros de Emmanuel, reconhecido por eles como o padre jesuíta Manoel da Nóbrega, obras que mais explicitam os erros de abordagem da Doutrina Espírita - junto à "série André Luiz" - , não sabem qual a obra xavieriana que poderiam aceitar, além das frases adocicadas de seus depoimentos e entrevistas.

Mesmo o caso André Luiz causa controvérsias. Afinal, praticamente apenas Nosso Lar e alguns livros derivados (como Missionários da Luz) são questionados severamente pelos kardecianos hesitantes, que ainda se dividem quanto à validade da "teoria mediúnica" de Nos Domínios da Mediunidade.

Por outro lado, os kardecianos hesitantes tendem a legitimar os conteúdos de Parnaso de Além-Túmulo, a coleção de pastiches poéticos que inaugurou a "psicografia" xavieriana, da mesma forma que veem veracidade nas obras que levam o nome de Humberto de Campos, embora admitam a ridicularidade do conteúdo de Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho.

Embora eles preguem o respeito e a apreciação do cientificismo de Kardec, eles evitam fazer qualquer questionamento com as atividades "espíritas" feitas no Brasil pelos "peixes grandes" (incluindo Xavier e Franco), levando em conta a mesma temeridade que, no Catolicismo, é definida pelo nome de "mistérios da fé".

Assim, eles preferem se abster da veracidade ou não das supostas "cartas mediúnicas", e não se encorajam em questionar, por exemplo, as atividades literárias ou artísticas atribuídas a espíritos de falecidos, exceto casos escancarados, como as supostas psicografias de roqueiros brasileiros, já que eles, muito populares e conhecidos, são abordados pelas mensagens de forma caricatural e cheia de contradições.

O que se pode concluir sobre os kardecianos hesitantes existentes no Brasil é que eles são um estágio ainda tímido e primitivo de busca de uma abordagem espírita autêntica. Ainda se apegam a fatos circunstanciais como a amizade de Chico Xavier e José Herculano Pires, que não reflete exatamente na viabilidade de aproveitar o anti-médium na recuperação do pensamento kardeciano, do contrário que essa facção tímida dos kardecianos tenta ainda acreditar.

Portanto, essa postura ainda não consegue compreender a natureza original da doutrina de Allan Kardec. Deixa passar boa parte das fraudes e mistificações do "espiritismo" brasileiro, tanto pelo medo de avaliar essas práticas quanto pela complacência de estereótipos de "humildade, amor e caridade" que não se encorajam em contestar.

Com isso, a lição de Allan Kardec continua sendo parcialmente apreciada. Da parte dos kardecianos hesitantes, o pensamento de Kardec pode até ser aceito com correção e profundidade, mas tudo acaba ficando apenas na teoria, enquanto, na prática, continuam valendo as fraudes e mistificações que o "espiritismo" brasileiro continua fazendo.

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