sábado, 30 de janeiro de 2016

Por que o Brasil insiste em ser contraditório?


As pessoas não conseguem entender o sentido da obra O Médico e o Monstro (Dr. Jekyll and Mr. Hyde), obra de 1886 escrita por Robert Louis Stevenson. Mais do que retratar a perversidade humana por trás de um pacato médico, o livro, na verdade, é uma alegoria da contradição humana em geral.

A obra fala muito ao Brasil, que se apega numa mania de contradições diversas. O Brasil insiste em ser um país que parece uma coisa e pratica outra. Em vários e vários e vários aspectos. E é isso que faz o país que sonha em comandar o mundo sucumbir à sua grave crise, seja econômica, existencial, moral, cultural etc.

Se o "movimento espírita", com seu roustanguismo muito praticado e nunca assumido, enquanto seus praticantes juram falsa fidelidade a Allan Kardec, reflete suas contradições internas e doutrinárias diversas, isso é, na verdade, um entre tantos exemplos de um quadro geral de um país que teima em querer ser desenvolvido mantendo seu subdesenvolvimento.

Culturalmente, temos mil exemplos de como as contradições norteiam, isto é, desnorteiam o país, e viciam os corações e mentes dos brasileiros, que ainda mantém como "heróis" figuras vindas da ditadura militar ou consequentes de seus processos e mentalidades.

Personalidades originárias da ditadura militar, como Jaime Lerner, Fernando Collor e Mário Kertèsz tentaram se sobressair, nos últimos anos, como supostos defensores de causas progressistas, sem que representassem diferencial para suas antigas causas reacionárias, apenas "pegando carona" nas conveniências políticas atuais.

Mas há também gente "nascida" em situações neoliberais que tentam se passar por "vanguardistas". Há o jornalista neoliberal metido a "intelectual de esquerda", Pedro Alexandre Sanches. Há mulheres que são ícones do erotismo machista, como Mulher Melão e Solange Gomes, que se passam por "feministas". Há a FM de pop convencional que vende uma falsa imagem de "rádio rock de verdade", a carioca Rádio Cidade. E as pessoas querem uma "cultura popular de verdade" através do comercialismo explícito e artisticamente postiço de tendências bregas e "populares demais".

Não se trata de uma adesão sincera de antigos conservadores a alguma causa mais avançada. Trata-se apenas de um oportunismo, uma falsa adesão condicionada pelas conveniências, seja para agradar pessoas mais influentes, seja para alimentar vaidades pessoais. E esse é um grande problema que atinge o Brasil.

Mas há também a situação trágica de que é no Brasil onde pessoas dotadas de algum diferencial artístico, cultural e moral tendem a morrer mais cedo ou no auge de sua atividade. Perdemos de Glauber Rocha a Renato Russo, de Leila Diniz a Dora Bria, de forma prematura, enquanto, mesmo já idosos, nomes como o geógrafo Milton Santos e os atores José Wilker e Marília Pera morreram no auge de suas atividades e ainda cheios de planos e projetos de vida que foram ceifados.

É o mesmo país do medo de que medíocres famosos sucumbam ao ostracismo, de ver homicidas idosos morrerem, de ver canastrões encerrando a carreira, fenômenos duvidosos de mídia serem cancelados. Perdemos muito do que havia de melhor para o país, mas temos muito medo de que canastrões, canalhas e facínoras morram ou caiam em um dramático ostracismo.

O Brasil das contradições tinha mesmo que sofrer sua grave crise. Essas contradições criaram zonas de conforto em que sensações extremas como o deslumbramento religioso e o moralismo vingativo convivem promiscuamente, e que, no âmbito ideológico, explica o fracasso de um frágil esquerdismo que anos de políticas progressistas não conseguiram desenvolver.

Afinal, o progressismo político encontrou sua barreira, nunca devidamente vista ou prevista, na influência do intelectualismo de centro-direita que "sequestrou" a intelectualidade de esquerda, como através de Paulo César Araújo e Pedro Alexandre Sanches, que forçaram as elites pensantes em geral a pensar na cultura popular sempre sob uma ótica subordinada às rígidas leis do mercado e do marketing.

A própria centro-direita intelectual e midiática, como se observa também em Mário Kertèsz, o ex-prefeito de Salvador que iniciou carreira política na ARENA (partido que comandou a ditadura militar), tentou se apropriar o máximo possível dos movimentos sociais e do pensamento de esquerda, para empastelar e reduzi-los a um inócuo pragmatismo tido como "moderado".

Voltando ao "espiritismo", o próprio caso de Francisco Cândido Xavier reflete esse apego às contradições. Figura conservadora e retrógrada, Chico Xavier parece um caipira dos tempos da República Velha e sempre foi devoto católico em toda sua vida. Defendia a ditadura militar e, como católico, era defensor de ideias antiquadas, como a Teologia do Sofrimento, aquela que define as desgraças humanas como "presente de Deus" e "caminho para o Céu".

No entanto, Chico Xavier é tido, por seus confusos seguidores, como "progressista", "ativista", "moderno", "futurista" e "avançado", sem que um único motivo consistente possa ser apresentado. Muito pelo contrário: não bastasse o visual brega que Chico Xavier teve em seu tempo, ele é visto como "ativista" e "progressista" por defender ideias retrógradas como "aguentar o sofrimento em silêncio e sem reclamar".

Ele era o ideólogo dos sonhos para os torturadores da ditadura. Afinal, a ideologia de Chico Xavier, espécie de "AI-5 do bem", pedia para os sofredores não reclamassem nem sequer mostrassem para as pessoas que sofriam. Se, por exemplo, um negro é humilhado por trolagens na Internet, ele deveria ficar calado e aceitar, sob o pretexto dele ter sido um romano racista num passado remoto. Se alguém é chicotado, o chicoteado (olha o trocadilho) tem que agradecer os algozes por esse "benefício".

Os brasileiros sempre se mantém na zona de conforto e, quando há crise, mais se apegam a eles. É como alguém que, vendo um bujão de gás vazar, abraça o objeto. As pessoas ainda se mantém viciadas em suas contradições, o medo é muito grande em se ver romperem paradigmas e hábitos originários dos anos 1970 e de seus derivados vigentes nos anos 1990.

Quando veio a ditadura militar, em 1964, e o AI-5, no final de 1968, foi muito fácil romper com paradigmas originários da Era Vargas e do período desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek. Mesmo a cultura brasileira, que resistiu plena até por volta de 1976, sucumbiu pouco depois, quando se ascendeu a mediocrização cultural sob todos os aspectos,

Hoje, no entanto, são os diversos valores vindos da Era Médici ou da Era Geisel ou, de forma derivada, durante a Era Collor ou a Era FHC, que mostram sua crise e desgaste profundos. Mesmo assim, as pessoas teimam em não querer perdê-los, mesmo que sejam as mortes de feminicidas ricos (alguns já "coroas" e idosos) que viraram notícia na mídia. É mais fácil o Estadão criar um texto de obituário antecipado do ex-presidente Lula do que do ex-jornalista Pimenta Neves.

Tratam-se de neuroses, fés religiosas, pragmatismos, utopias diversas, que correm o risco de se perderem. Os roqueiros autênticos estão resignados com o fim definitivo da antiga Rádio Fluminense FM, mas uma parcela da juventude do Rio de Janeiro é capaz de reagir, com fúria e reacionarismo descomunais, no caso da canastrona Rádio Cidade largar novamente o rock, segmento que a emissora demonstrou não ter vocação nem competência.

Mas se a sociedade brasileira mantém como heróis Jaime Lerner e Fernando Collor, e até pessoas envoltas em crimes, como o goleiro Bruno e o ex-ator Guilherme de Pádua, mantém seus fãs-clubes e fazem carreira como sub-celebridades, então o Brasil está mergulhado num lodo pior do que "aquela corrupção" que muitos brasileiros "revoltados" só conhecem nas coberturas duvidosas da mídia ultraconservadora.

É isso que faz o Brasil ficar num impasse. E mostra que ser "moderado" e "equilibrado" não é o mesmo que ser contraditório. Pelo contrário, a manutenção de contradições diversas revela uma série de desequilíbrios, impasses, confusões, escândalos e desordens que não podem expressar "moderação".

E é aí que o Brasil teima em não se resolver. Acha que, para não "perder a cabeça", não pode perder seus paradigmas viciados. O "edifício" construído em 1974 ameaça ruir, e esse é o grande medo de muitos brasileiros. Só que, se o "edifício" não for derrubado, é o Brasil que será.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.