domingo, 3 de julho de 2016

Brasileiros continuam iludidos com o status quo


O grande problema no Brasil é uma ilusão simplória. As pessoas ainda se apegam a padrões de status quo que fazem com que se estabeleça uma relação de hierarquia que perde cada vez mais o sentido, mas que diante disso resistem de maneira permanente.

O governo de Michel Temer mostra o quanto o status quo mostra suas armadilhas num país marcado pela mediocridade sócio-cultural e pelas desigualdades sócio-econômicas. Temer se reveste de uma roupagem que reúne elegância pessoal e uma equipe de "notáveis" que, pelo menos em parte, se voltam a paradigmas técnicos ou o mito de que um distanciamento numa especialidade garantiria maior objetividade e isenção.

No entanto, esses mitos são derrubados com os inúmeros escândalos que um governo que pareceria retomar a "racionalidade" que ilude muitos que se constrangem quando operários ou ex-militantes estudantis (como Dilma Rousseff) detém o Governo Federal.

Sob a desculpa de atribuir poder a "especialistas", os brasileiros teimam em se apegar ao status quo na atribuição do poder decisivo. Muitas pessoas ainda raciocinam como se ainda vivêssemos sob a ditadura militar. A ideia de alguém, ao mesmo tempo especializado e distanciado, que decide por alguma coisa, alguém ao mesmo tempo "de fora" que se "especializa" a alguma coisa.

No âmbito da cultura, da política, da economia ou da mobilidade urbana, surgem "deuses" que ocupam o Olimpo da adoração coletiva através desses atributos que envolvem desde paradigmas de elegância e etiqueta (como o sisudo Michel Temer) até mitos de austeridade (Roberto Campos), metodismo (Jaime Lerner) e objetividade (Fernando Henrique Cardoso).

Mas tudo isso tem seu preço. O mito de objetividade atinge até mesmo a adoração de uma rede de televisão que se passa por "plural", a Rede Globo de Televisão, juntamente com seus derivados midiáticos (O Globo, Época e Globo News, por exemplo).

Ela chega mesmo à cultura jovem, quando, contrariando o estigma de rebeldia e engajamento do rock, uma parcela da sociedade aceita que uma rádio sem vocação nem tradição, a Rádio Cidade, do Rio de Janeiro, seja uma "rádio rock" sem ter pessoal especializado no ramo, composto por locutores ligados a FMs de pop dançante ou música popularesca.

É o status quo. Uma rádio que, para o rock, é completamente incompetente e constrangedora, cuja abordagem do gênero não chega a cobrir o básico - a divulgação de bandas seminais chega, em muitos casos, a se reduzir a uma única música e a grade de programação prioriza somente programas de besteirol e de sucessos musicais - , mas cuja defesa extrema, pelo mercado, pela mídia e pela juventude, se dá pelo status quo.

Neste caso, aspectos são considerados: o impecável departamento comercial que aparentemente compensa uma programação completamente desastrada, o bom relacionamento dos donos da Rádio Cidade com os grandes empresários de shows (como Roberto Medina) e até o mito, defendido pelos reacionários produtores da emissora, de que contratar radialistas sem envolvimento com rock traria o "distanciamento necessário para uma atuação mais imparcial".

Aí tem problemas. Atuação "imparcial" é botar programas de besteirol sem relação com o rock - um deles é sobre futebol, esporte cujos adeptos, em maioria esmagadora, não gostam do gênero - , tocar somente os hits e despejar gírias, não bastasse o nome "Rádio Cidade", de tão banal (há até rádios homônimas de perfil evangélico), nada dizem como diferencial para o público roqueiro?

São problemas de status quo, que no âmbito geral são mostrados pelos sucessivos escândalos que atingem o governo Michel Temer, envolvendo o próprio presidente interino, desafiando a opinião pública que costuma divinizar o status quo através de mitos ligados à disciplina, técnica e objetividade que se desgastam de forma avassaladora, ainda que denunciar esse desgaste cause muita irritação na sociedade.

ATÉ O "ESPIRITISMO" SOFRE DESSA ILUSÃO

E ainda não falamos da mobilidade urbana, em que o "padrão Jaime Lerner" estabelece uma superioridade messiânica mesmo quando seu plano para o transporte coletivo esconde empresas de ônibus sob uma pintura padronizada, há demissão em massa de cobradores de ônibus por causa da dupla função do "motorista-cobrador" e obriga as pessoas a fazer baldeação em dois ou três ônibus por causa dos mitos do "sistema integrado" e da supervalorização do Bilhete Único.

Mesmo quando Lerner está associado à ditadura militar, quando o arquiteto paranaense era filiado à ARENA e havia se tornado "prefeito biônico" (nomeado pelos generais) de Curitiba, e pelo fato de, como político, ele ter praticado corrupção, a reputação "divina" ainda continua inabalada.

É o apego ao status quo, que em várias ocasiões faz emergir bordões como "rouba mas faz" e que, no "espiritismo" poderia ter um outro bordão, de significado próximo: "faz fraude mas é bom". Pois o "'rouba mas faz' espírita" faz com que os anti-médiuns Francisco Cândido Xavier e Divaldo Franco tenham uma blindagem social, midiática, política e jurídica de fazer os políticos do PSDB ficarem babando.

Se já é aberrante um político como o senador Aécio Neves, envolvido até a medula em tantos escândalos de corrupção, mas tem a sorte da blindagem da mídia (sobretudo Veja e Rede Globo) e de setores do Judiciário (não fosse a parcialidade do juiz Sérgio Moro, Aécio já estaria na cadeia há um bom tempo), imagine então em "espíritas" que fazem pastiches literários e inserem mistificação barata sob o manto da "caridade".

Chico Xavier nunca passou de um católico paranormal que realizou pastiches literários e outros truques ilusionistas. Não era menos traiçoeiro que Otília Diogo e, pelo que realmente fez, Chico só seria lembrado, entre nós, na melhor das hipóteses, como um verbete pitoresco do Guia dos Curiosos. No entanto, sua reputação cresceu de forma descontrolada, alimentada por interesses mesquinhos da FEB e até da Rede Globo de Televisão, que hoje Chico Xavier é visto como um quase "deus".

Divaldo Franco segue o mesmo caminho, à sua maneira, pois, diferente do mineiro, o baiano é mais sutil nas suas manobras. Adota uma estética de professor dos anos 1920-1940, com uma retórica rebuscada, como nos oradores da República Velha, reunindo valores simbólicos ligados ao moralismo, à etiqueta e padrões hierárquicos.

Ele é um demagogo, um deturpador religioso que em países mais evoluídos, seria desmascarado como um charlatão explorador da fé alheia. Mas Divaldo é beneficiado pela simbologia do status quo que já blinda Chico Xavier em outros aspectos, ligados a estigmas de "velhice" e "bondade".

O status quo da fé religiosa, a exemplo do que ocorre com o ideal dos festejos profanos, vale por uma relativa inversão valorativa em que ideias que nunca seriam apoiadas em condições normais passam a ser defendidas até com um certo fanatismo.

Nos festejos profanos (como nas ditas "baladas" defendidas pelo entretenimento midiático, juntamente com "bailes funk", vaquejadas, micaretas etc), a inversão consiste em adotar práticas de liberdade sexual e instintiva que o discurso moralista usualmente condena em ocasiões comuns.

Na fé religiosa, a ideia condenável é a simbologia de pessoas idosas, frágeis, doentes e humildes, vistos como "escória" pelo discurso elitista. No entanto, esse mesmo discurso admite a valorização destas ideias quando elas se voltam ao âmbito religioso, até porque esse é um setor para o qual se destinam "lavagens de dinheiro" de corruptos ou a doação de objetos considerados obsoletos ou fora de moda pelas pessoas ricas.

Esse cenário de "inferioridade social" aceita pelo imaginário elitista devido ao âmbito religioso é também uma forma das elites reservarem à classe média os meios de diminuir apenas os danos extremos de miséria e pobreza, sem que exigissem dos mais ricos se comprometer a tais tarefas ou abrir mão de seus privilégios exorbitantes. Na sociedade elitista, enquanto os ricos têm um excedente de bens e privilégios, a classe média torna-se fiadora da relativa resolução da pobreza e miséria.

CRISE DE VALORES

A crise que se nota no Brasil não é uma simples crise econômica ou de administração política. Não é uma mera crise de segurança, que faz estourar a violência nas ruas nem no desvio de verbas necessárias para investimentos diversos.

É, na verdade, uma crise de valores. Se um hospital é invadido por bandidos para libertar um comparsa, se existe barata na merenda escolar, se um ônibus com pintura padronizada sofre acidente de trânsito com 40 feridos e se até o presidente interino da República é indiciado por corrupção (e até condenado a não concorrer em cargos eletivos por oito anos), isso não é uma crise política ou econômica.

A crise atinge vários sentidos. Cultural, moral, existencial, midiática, urbana, automotiva etc. Uma crise que se apoia no desgaste de reputações. Pois os maiores envolvidos em corrupção e fraudes são justamente pessoas que ainda gozam de prestígio porque simbolizam o status quo político, econômico, administrativo, técnico, acadêmico, midiático e religioso.

De Luciano Huck a Jaime Lerner, de Aécio Neves a Chico Xavier, da Rede Globo à Rádio Cidade, das filiais brasileiras da MC Donald's à Confederação Brasileira de Futebol (CBF), do "funk carioca" ao BRT, tudo isso simboliza o desgaste de decisões e práticas que se respaldavam em uma alegada superioridade de pretensos detentores de superioridade nos âmbitos de status acima citados.

Isso desnorteia gravemente nossa sociedade, que fica confusa e desorientada. Ela não quer ver cair seus totens envolvidos em escândalos gravíssimos. Prefere a ilusão fácil do bordão "quem nunca erra?", ignorando que os erros que seus ídolos de diversos tipos fazem e os que instituições e medidas provocam causam um sério prejuízo de proporções incalculáveis para a população.

É através dessa ilusão do "quem nunca erra?", que mais parece uma sutil apologia a erros graves cometidos por gente "tarimbada" que o Brasil está sofrendo a crise extrema que envergonha o mundo. A complacência ao status quo que permite que os "de cima" cometam erros graves que supostamente "não fazem mal" faz com que tantos prejuízos, irregularidades e escândalos aconteçam. Não será hora de sacrificar e derrubar muitos totens em nome da ética, da coerência e do bom senso?

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