quinta-feira, 24 de novembro de 2016

A pós-verdade é a doença do século XXI?


Diante de episódios um tanto bizarros como a rejeição dos colombianos à proposta, lançada em plebiscito, de acordo de paz entre o governo e os guerrilheiros da FARC, a saída da Grã-Bretanha da União Europeia e a vitória eleitoral de Donald Trump, contrariando todas as perspectivas da eleição de Hillary Clinton para a presidência dos EUA, temos um fenômeno surreal em andamento.

É a pós-verdade, palavra que se tornou o verbete do ano pelo conceituado dicionário Oxford (em inglês, post-truth), que consiste na prevalência de ideias com maior apelo emocional do que com outras relacionadas a fatos objetivos, ainda que ocultos pelo jogo de aparências.

Isso faz com que as pessoas deixem de acreditar na Justiça de forma objetiva e imparcial, ou mesmo em valores morais e sociais diversos, preferindo a seletividade dos privilégios pessoais, do misticismo agradável, de visões estereotipadas que prevalecem sobre visões realistas e tudo o mais.

As pessoas abrem mão até de suas necessidades reais, movidas pela catarse e pela idolatria a totens e dogmas diversos. Preferem ser prejudicadas em prol de um virtual benefício que elas não sabem o que é, e que mais parece um espetáculo do que realmente alguma coisa benéfica.

As pessoas movidas pelo espetáculo, pelo sensacionalismo, pelo consumismo, são movidas pela publicidade e pelo noticiário faccioso, que as estimula a veicular ou acreditar em mentiras difundidas pelas mídias sociais. E as mídias sociais agora têm na própria grande mídia como "concorrente" na veiculação de mentiras e notícias falsas.

O Facebook quer coibir a divulgação de notícias falsas? É justo, mas no entanto tem-se a Veja que, impunemente, publica mentiras cabeludas sobre Lula, como a suposta fuga para a Itália. E há ainda os catárticos canais do YouTube que, "jornalisticamente", inventam que o ex-presidente teria feito um plano para matar o juiz Sérgio Moro, tido como "vítima" de um "atentado a tiros" que nem a Globo noticiou.

A pós-verdade virou a supremacia da catarse sobre a sensatez, que faz com que pessoas tenham uma compreensão tão atrofiada da realidade que em muitos casos, para fazer prevalecer seus pontos de vista, lançam mão de blogues ofensivos que acabam tendo o maior cartaz...na Polícia Federal.

"ESPIRITISMO" BRASILEIRO: PIONEIRO NA PÓS-VERDADE?

A supremacia da pós-verdade tem como um dos exemplos pioneiros o "movimento espírita". O fenômeno de Francisco Cândido Xavier é o símbolo maior da pós-verdade, e seus seguidores, quando colocam a fé e o misticismo, sob a desculpa do "amor" e da "bondade", acima da lógica e do bom senso, comprovam isso.

As pessoas estão enfeitiçadas pela figura religiosa de Chico Xavier e seus estereótipos ligados a um caipira "frágil" que se tornou "velhinho doente" e de sorriso "triste". Elementos que despertam o apelo emocional, o argumentum ad passiones que consiste numa das mais perigosas e persistentes falácias usadas para convencimento das multidões.

"Espíritas" chegam mesmo a mostrar descaso com a irregularidade das obras "psicográficas", que destoam dos aspectos pessoais dos mortos a que se atribui autoria, e acham que "tudo é válido" por causa da risível ideia da "mensagem universal do amor". Não medem escrúpulos em colocar o "amor" a serviço da desonestidade doutrinária de obras que contradizem, em muitos aspectos, os postulados originais de Allan Kardec.

A carteirada moral de dizer que "Chico Xavier e Divaldo Franco erraram, mas ajudaram muita gente" é uma demonstração de pós-verdade. Essa "ajuda" nunca teve comprovação de uma quantidade expressiva de beneficiados, e essa "caridade" associada aos dois festejados anti-médiuns é uma grande falácia pois, se fossem verdade, nosso Brasil teria ingressado ao Primeiro Mundo há muito mais tempo.

A pós-verdade, neste caso, revela o domínio do sentido ligado ao deslumbramento da fé e ao prestígio religioso. Pouco importam se os resultados da suposta filantropia são ínfimos. A grandiloquência simbólica do ídolo religioso vale em si, como nas declarações do procurador Deltan Dallagnol: "não temos provas, mas temos convicções".

É a tese do "domínio do fato" deturpada dos conceitos originais do jurista alemão Claus Roxin pelas mãos da Operação Lava Jato, para a qual o combate ao PT dispensa provas rigorosas e consistentes. O "domínio do fato" acaba sendo distorcido como um "domínio da suposição", como a prevalência do palpite sobre a investigação, da impressão sobre a análise.

No "espiritismo", a situação vai em direção contrária ao que se faz contra o PT. Se Dilma Rousseff e Lula são vistos como "criminosos" apenas pelo senso especulativo e catártico da pós-verdade de seus oposicionistas, Chico Xavier e Divaldo Franco são "santificados" por muito poucas virtudes, talvez quase nada, muito mais pelo carimbo religioso do que pela qualidade de seus atos, muitas vezes de valor ético bastante duvidoso.

A pós-verdade é um grande perigo e uma súbita ameaça num mundo que, no decorrer do século XXI, esperaríamos que fosse mais esclarecido. A pós-verdade é o obscurantismo pós-moderno, em que pessoas chegam a ameaçar outrem para impor suas convicções e manter os velhos dogmas e totens intatos, mesmo quando apodrecidos, decadentes e obsoletos.

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