sábado, 11 de março de 2017

Não se pode enganar as pessoas por amor


O maior problema do "espiritismo" brasileiro é a sua desonestidade doutrinária. Nas últimas décadas, passou a renegar as raízes roustanguistas, em nome de uma falsa promessa de recuperar as bases kardecianas. A chamada fase dúbia, no entanto, só conseguiu agravar o apelo igrejista que herdou dos tempos em que assumiu sua predileção por Jean-Baptiste Roustaing.

O "espiritismo" usou de uma malandragem para permitir essa fase dúbia, na qual a hipocrisia adotada pelo "movimento espírita" se acentuou, com as federações regionais agindo pior do que o "alto clero" da FEB. Usando das tradições de religiosidade do brasileiro, forjou-se um suposto "espiritismo autêntico" altamente catolicizado.

É só ver o quanto, na fase dúbia, os romances "espíritas" passaram a fazer mais sucesso, o igrejismo de Francisco Cândido Xavier esteve no auge, o de Divaldo Franco entrou em plena ascensão e as "casas espíritas" passaram a contar ainda mais, em suas palestras, estórias "lindas" de "amor e superação" que pairam entre contos de fadas e milagres católicos.

A desonestidade do "movimento espírita" ainda está no caso da "mediunidade" de faz-de-conta, que não passa de propagandismo religioso, praticamente um mershandising. Até mensagens atribuídas a ateus falecidos carregam um apelo igrejeiro um tanto suspeito. Todos pedindo para "unirmos pela fraternidade em Cristo", sem variações.

Que religiões como o catolicismo e o protestantismo apresentam casos de irregularidades, tudo bem. No caso deste último, as seitas neopentecostais simbolizam, por exemplo, um arrivismo movido a acúmulo financeiro através dos "dízimos" colhidos de fiéis, que tempos depois se "converte" (olha em trocadilho) em compras de redes de televisão e rádio.

Mas ver que o "espiritismo" se autoproclama "honesto" com "mediunidade" de faz-de-conta e um igrejismo que contraria o pensamento de Allan Kardec é chocante. E ver que essa desonestidade doutrinária e prática é sustentada pelo aparato da filantropia preocupa, e muito.

Há até mesmo uma versão "espírita" do "rouba mas faz": "Deturpa mas é bondoso", "entende mal Kardec mas ajuda muita gente", "Contraria os postulados espíritas mas trazem mensagens de amor e fraternidade" são as desculpas mais tipicamente utilizadas.

Combinar desonestidade com amor não faz a desonestidade ficar mais honesta. Não se engana as pessoas por amor. Enganar pressupõe uma traição, uma armadilha, uma forma de lesar alguém através de um modo traiçoeiro de dominação. Supor que todo esse processo possa ser feito "por amor" ou pelo "pão dos necessitados" não torna a coisa mais honesta. E isso fica até pior.

Na suposta mediunidade, se observam quadros falsificados, curas feitas com métodos duvidosos, psicografias que não refletem os estilos pessoais dos autores mortos alegados, psicofonias que mais parecem espetáculos de imitação humorística, e tudo isso acrescido de ideias que os brasileiros estão acostumadas a serem associadas a Allan Kardec, mas que o pedagogo francês em nenhum momento se atreveria a defender ou aprovar.

Isso é grave. Aliás, não é apenas grave. É gravíssimo. Tudo isso descrito no parágrafo anterior é desonestidade doutrinária, algo que não pode usar o "amor" para atenuar seu caráter deplorável e apelar para a aprovação e o consentimento da sociedade. Amor e caridade não podem ser cúmplices da desonestidade. Se o amor é pretexto para enganar alguém, com certeza isso não é amor.

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