domingo, 19 de março de 2017

O grande mal de reprovar a deturpação e proteger o deturpador


Isso é que dá não ouvir os conselhos de Erasto. Mesmo os críticos da deturpação espírita adotam posturas tão melindrosas e hesitantes que eles acabam caindo na tentação bastante perigosa da complacência, do consentimento com o erro.

O governo Michel Temer é a expressão de uma série de posturas contraditórias que antes adormeciam no inconsciente das pessoas, presas em paixões materiais ou simbólicas - as paixões religiosas se incluem em tudo isso - , nos quais os privilégios sociais diversos se revelam qualidades frágeis diante de tantos e tantos escândalos que não devem ser subestimados.

O "espiritismo" também é um subproduto disso, e o Brasil tornou-se um terreno fértil e bem sucedido para os deturpadores da Doutrina Espírita. Tanto que a maior parte dos debates sobre a deturpação do conteúdo do Espiritismo feita no Brasil é sempre feita de forma a proteger o deturpador, o que é uma grande e perigosa armadilha.

Se Francisco Cândido Xavier, um dos maiores e gravíssimos deturpadores, o "inimigo interno" alertado um século antes pelas mensagens do espírito Erasto, tem alguma grande qualidade, foi sem dúvida alguma a de levar vantagem em tudo usando o prestígio religioso e técnicas de manipulação da mente através do Ad Passiones, o "apelo à emoção".

Muitos acham o "apelo à emoção" uma atitude linda e saudável, mas ela é das mais doentias e sombrias. Vale lembrar que especialistas de diversos campos do Conhecimento, como a Linguística e a Psicologia, consideram o Ad Passiones um tipo de falácia, que é a transmissão de um tipo de ideia mentirosa ou falsa através de um processo de persuasão que dê ao interlocutor a impressão de que tal ideia é verdadeira.

Enquanto as pessoas ficam incomodadas quando as críticas contra Chico Xavier, Divaldo Franco e afins se tornam mais enérgicas, confundindo-as com "ataques", nos esquecemos dos alertas urgentes que Erasto havia trazido, que é ter maior vigilância quando espíritos mistificadores passam a transmitir "coisas boas".

Aceitamos os deturpadores porque eles oferecem um espetáculo de "filantropia" e "palavras de amor" que serve para o entretenimento fútil de pessoas que não conseguem ser bondosas por conta própria, precisando de um ídolo religioso para simbolizar um estereótipo de "bondade" que pode não ser real, mas traz simbologias que deixam as pessoas comovidas, desperdiçando lágrimas com esse verdadeiro marketing da caridade.

Há falhas gravíssimas, erros dos mais preocupantes que, num país menos imperfeito, faria com que seus praticantes não fossem poupados por uma vírgula sequer das desculpas que, no Brasil, se dá tão ferrenhamente aos deturpadores da Doutrina Espírita, a ponto deles gozarem de forte blindagem. Aqui, para qualquer farsante ganhar impunidade absoluta, basta ser rico, do PSDB e "espírita", ou pelo menos qualquer um dos três requisitos.

Poucos percebem os erros aberrantes que envolvem as estrelas do deturpado espiritismo brasileiro. As pessoas são tomadas de um processo obsessivo chamado "fascinação", já descrito em O Livro dos Médiuns de Allan Kardec.

Relendo o caso do "abraço" de Chico Xavier a Humberto de Campos Filho, antes bastante cético quanto à suposta psicografia atribuída ao espírito do pai, o que se observa não é um lindo exemplo de misericórdia, alegria e caridade, mas uma combinação de artifícios que envolveram caridade paliativa (também conhecida como "assistencialismo") e a fascinação obsessiva. Vejamos o que Humberto descreveu em Irmão X: Meu Pai:

"Chegamos a tempo de conseguir entrar na sala superlotada, onde pouco depois, começaria a sessão, com a presença de Chico. Lá pelas tantas, vozes partidas da mesa, por ele presidida, pediam que Humberto de Campos Filho se aproximasse para falar com o médium. É fácil imaginar minha emoção. Sei que meus olhos estavam inundados pelas lágrimas quando nos abraçamos, comovidamente. De início, foi o Chico que falou, dizendo coisas tocantes e carinhosas. À certa altura, era outro alguém... Talvez meu pai?... E o que ouvi teve o efeito de um impulso que fez disparar uma sucessão de soluços, que pareciam que jamais iriam parar.

   No dia seguinte, um sábado, ainda com a impressão de que meu espírito havia tomado um banho de luz, fomos participar da distribuição de mantimentos.

   Sem mais nem menos, tive a nítida impressão de que estava em alguma cidade da Galileia, nos primórdios do cristianismo.

   Em um enorme galpão, sem paredes laterais, senhoras e moças, alegres e sorridentes preparavam a sopa que, mais tarde, seria distribuída entre os pobres. Pilhas de cenouras, montes de batatas, iam sendo descascadas e levadas para os caldeirões que, a um canto, fumegavam cheirosamente.

   Ao cair da tarde, nos incorporamos à caravana, liderada pelo Chico, que ia distribuir sacolas de mantimentos pelos casebres da periferia. Ao lado do Waldo Vieira, caminhamos naquele pôr-de-sol, com a certeza de que uma legião de espíritos luminosos também caminhavam conosco. Lá  pelas tantas, Chico entrou numa palhoça, de um só cômodo. Ficamos à porta, com espaço bastante para ver Chico sentar-se na beirada de uma cama estreita e miserável. Nela estendido, um pobre velho, pouco mais que um monte de ossos, sob uma cabeça coberta por uma grande barba e cabelos desgrenhados. O coitado fez menção de erguer-se mas Chico, colocando a mão no seu peito, não deixou. De onde estávamos não era possível ouvir o que ele dizia. Mas o que disse fez o pobre homem se transformar em um enorme sorriso, cheio de gratidão e alegria. E, ao mesmo tempo, sentimos uma onda de perfume, de jasmins colhidos naquele instante, invadir completamente aquela tapera..."

Dentro do moralismo e do deslumbramento religioso e elitista de muitos, a tendência é achar que esse trecho revela uma demonstração de amor ao próximo, perdão, reconciliação e todas as qualidades positivas que alguém pode imaginar. Só que isso é enganoso, no contexto de que Chico Xavier é um sério e gravíssimo deturpador da Doutrina Espírita. Confrontemos com os alertas trazidos pelo espírito de Erasto, em O Livro dos Médiuns:

"Os médiuns levianos, pouco sérios, chamam, pois, os Espíritos da mesma natureza. É por isso que as suas comunicações se caracterizam pela banalidade,a frivolidade, as idéias truncadas e quase sempre muito heterodoxas, falando-se espiritualmente.(8)  Certamente eles podem dizer e dizem às vezes boas coisas, mas é precisamente nesse caso que é preciso submetê-las a um exame severo e escrupuloso. Porque, no meio das boas coisas, certos Espíritos hipócritas insinuam com habilidade e calculada perfídia fatos imaginados, asserções mentirosas, como fim de enganar os ouvintes de boa fé.

Deve-se então eliminar sem piedade toda palavra e toda frase equívocas, conservando no ditado somente o que a lógica aprova ou o que a Doutrina já ensinou.

As comunicações dessa natureza só são perigosas para os espíritas que agem isolados, os grupos recentes ou pouco esclarecidos, porque, nas reuniões de adeptos mais adiantadas e experientes, é inútil a gralha  de se adornar com penas de pavão, pois será sempre impiedosamente descoberta".

No Brasil, a tarefa de médium já é corrompida pelo "culto à personalidade". Vejamos o que isso significa, antes que pessoas se revoltem na atribuição desta qualidade sombria a pessoas "de notável humildade" como Chico Xavier e Divaldo Franco.

O culto à personalidade ou o culto de personalidade geralmente é usado na propaganda política. É uma estratégia baseada na exaltação das virtudes, reais ou supostas, de um referido líder, assim como a divulgação positiva de sua figura.

Esse processo pode ser usado também em outros âmbitos. Em Salvador, temos o exemplo, no rádio baiano, da pessoa de Mário Kertèsz, um pseudo-radiojornalista que havia sido político lançado pela ARENA (partido da ditadura militar) e que é popularmente conhecido como o "Paulo Maluf baiano", por conta de sua atuação política que misturava arrivismo com corrupção. Na Rádio Metrópole FM, a figura de Mário, proprietário da emissora, é cultuada de maneira quase divinizada.

Na religião, há muitos exemplos de culto à personalidade ocorridos em seitas diversas. E o "movimento espírita" não está livre de tal constatação, uma vez que a figura do "médium" já é corrompida pelo fato de que ele deixa de ser um mero intermediário para ser não só o centro das atenções, mas objeto de adoração que chega ao ponto do mais cego fanatismo.

Notem que os "médiuns", eles em si deturpadores de tudo relacionado à Doutrina Espírita - como a veiculação de valores que entram em conflito com os postulados kardecianos e a suposta mediunidade que não passa de um faz-de-conta para propaganda religiosa da doutrina igrejeira a que se reduziu "nosso espíritismo" - , tentam, pelo menos, três apelos para conquistar a confiança das pessoas de senso moral pouco vigilante:

1) AD PASSIONES - Fazem todo tipo de apelo à emoção: "estórias lindas", "casos de superação pessoal", além de supostas atividades filantrópicas que pouco ajudam e mais parecem promover o "benfeitor" às custas dos mais carentes. Na narrativa aqui reproduzida de Humberto de Campos Filho, nota-se que a "caravana" mais chama a atenção pelo exibicionismo do que pela caridade, pouca, que realiza, pois investe apenas em ações meramente paliativas, até positivas, mas insuficientes.

No apelo à emoção, o "médium" sempre lança um repertório ideológico que arranca comoção das pessoas. Algo que parece lindo e saudável, moralmente revigorante, mas tal impressão é enganosa e perigosa. Tão enganosa que, diante do menor questionamento, os seguidores dos "médiuns" explodem de raiva, revoltados, até com muito ódio, diante da menor desilusão. 

Esse apelo produz paixões religiosas que acabam alimentando a vaidade e o prestígio de "médiuns" que se valem dessa mitologia que os cercam, de pretensos filantropos, sob a qual constroem seu prestígio, seu poder e, diante da prática dissimuladora tão comum no Brasil, exercem seu domínio transmitindo uma suposta imagem de humildade e comedimento.

2) COITADISMO - O coitadismo ou o vitimismo faz a festa dos deturpadores. Se torna uma espécie de "contra-ataque" pelo avesso. O arrivista Chico Xavier sempre usava do coitadismo para levar vantagem nos escândalos que produziu. Sim, isso mesmo. Afinal, em vez de se lançar como poeta de produção própria, foi Chico Xavier usurpar os nomes dos literatos mortos e a partir daí gerou muita e muita confusão. 

Mas aí, diante das críticas severas que recebeu, o esperto Xavier fazia uma manobra, que é não reagir a essas críticas. "Não vamos botar querosene nesse incêndio", dizia ele, em várias ocasiões. Ele se fazia de vítima, bancava o coitadinho e isso era ótimo para forjar humildade. Era também o uso da Teologia do Sofrimento em proveito próprio, se promovendo pelo silêncio mediante o sofrimento, mas desta vez com chance de levar alguma vantagem.

O coitadismo faz a festa dos deturpadores da Doutrina Espírita de forma a fazê-los triunfantes diante da imagem de vítimas que força a piedade dos outros. Com isso, desvia-se o foco da distorção dos postulados da doutrina de Allan Kardec de forma que até os que reprovam a deturpação poupem os deturpadores. 

É um processo inverso do dos políticos do PT, tidos como "criminosos sem crime", porque a deturpação do Espiritismo, tido como um "crime sem criminosos". No caso do PT, se culpa pessoas que não cometeram crime e mesmo assim são criminalizadas. No "espiritismo" brasileiro, absolve-se pessoas que cometeram crime (de falsidade ideológica, por exemplo, no caso da usurpação de pessoas mortas para produção de mensagens) e, mesmo assim, são inocentadas.

3) ASSISTENCIALISMO PARA LEVAR VANTAGEM - Vamos comparar o que ocorre nas campanhas eleitorais das cidades do interior. Candidatos em campanha realizando fornecimento de cestas básicas, com o objetivo de impressionar a opinião pública e garantir larga vantagem em votos.

Durante a República Velha ou mesmo até recentemente, em muitas regiões do Brasil, essa prática era consentida e garantia a longevidade de domínio de oligarquias políticas regionais. Só mais recentemente, com leis de combate à corrupção, como a Lei da Ficha Limpa, essa prática tornou-se oficialmente um crime eleitoral.

No entanto, essa prática garante uma blindagem absoluta aos deturpadores do Espiritismo, de forma que a deturpação ganha um atenuante. Os brasileiros inverteram os conselhos de Erasto que havia dito: "no meio das boas coisas, certos Espíritos hipócritas insinuam com habilidade e calculada perfídia fatos imaginados, asserções mentirosas, como fim de enganar os ouvintes de boa fé".

Em vez disso, os brasileiros preferem acreditar: "É certo que certos espíritas cometem deslizes quanto ao pensamento de Allan Kardec e até entendem tudo errado, mas devemos dar consideração a eles porque eles são bondosos e ajudam muita (sic) gente". Nada que um Ad Passiones não resolva, não é mesmo?

O GRANDE PERIGO

Reprovar a deturpação mas aceitar os deturpadores é uma armadilha bastante perigosa, porque é um caminho que acaba voltando para a própria deturpação, porque a crença de que os deturpadores são "bondosos", além de esconder todo um processo leviano de mistificação e manipulação religiosa, dá todo o cartaz a esses arrivistas da fé, que praticamente se colocam acima do próprio Allan Kardec.

Acreditar na "bondade" dos deturpadores é algo muito perigoso. Permite-se que a "bondade" possa estar a serviço da fraude, da mistificação, do arrivismo, da mentira, da incoerência. Mesmo os mais racionais críticos da deturpação espírita se sentem tentados a recuar ao verem ilustrações piegas com Chico Xavier colocado dentro de um coraçãozinho vermelho ou Divaldo Franco cercado de alegres crianças pobres.

Isso é muito perigoso e malicioso, e pode fazer com que os esforços para recuperar a coerência dos ensinamentos de Kardec sejam seriamente corrompidos. Isso por causa de armadilhas que não surgem de uma só vez, mas aos poucos. Vejamos:

a) Se você não se aprofunda nem torna rigorosos os questionamentos contra a deturpação espírita por achar que "pelo menos Chico Xavier e Divaldo Franco praticam bondade", então você torna incompletos tais questionamentos, numa postura que parece "objetiva" mas demonstra uma total hesitação e perda de vigilância. Com tal postura, os avisos de Erasto foram jogados no lixo.

b) Como você gosta de Chico Xavier e Divaldo Franco, apesar de, a princípio, admitir que eles deturparam o legado kardeciano, você então aposta algumas fichas neles e em seus similares e, com suas ressalvas aos deturpadores, você admite dar algum crédito a eles.

c) Diante disso, você, como acha que Chico e Divaldo são "bondosos" e "ajudam as pessoas", você é tantado a ler seus livros, porque eles "só podem trazer coisas boas". Lendo os livros, será levado a acreditar que suas ideias "não ofendem" e passa a ver que sonhar com "colônias espirituais" e "crianças-índigo" lhe parece mais agradável. Com isso, suas antigas críticas à deturpação acabam sendo jogadas no lixo.

Daí que, reprovando a deturpação em favor de alguma admiração aos deturpadores - ou algum respeito, diante do discurso dissimulador dos ressalvadores de plantão, que dão a impressão de "agirem sem complacência, mas de forma objetiva" - , a deturpação volta à tona e todos os esforços de recuperar as bases kardecianas acabam ficando em vão.

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